CADERNOS DE ARTISTA
O Milagre de Helvetia
2022, 20 min, Suíça/Brasil

O Milagre de Helvetia
Sexto capítulo do Atlas Mundial SuperFiccional, “O Milagre de Helvetia” investiga a Suíça como constructo alegórico de beleza, riqueza e perfeição. Partindo da figura alegórica de Helvetia, criada no século XIX como mãe e personificação da pátria, o capítulo recria um panteão de deusas ao seu redor, encarnações dos valores sagrados e mitologias contemporâneas suíças, investigando assim quais são as construções espirituais, políticas, diplomáticas, simbólicas, midiáticas e jurídicas que participam da edificação do Olimpo Helvético.
Helvetia, a Deusa-mãe bicéfala, reina sobre o seu Olimpo Superficcional. Uma de suas faces é cega, surda e muda, com o semblante impávido e insensível a todas as convulsões do mundo ao seu redor. A outra, em permanente estado de alerta, controla com intransigência cada movimento do povo olímpico. Ela opera milagres com um otimismo baseado na certeza de sua perpetuação. Fossilizada e oportunista, está disposta a tudo para ver o Olimpo prosseguir sua ascensão ao firmamento. Através de sua prole que forma o panteão helvético, ela controla os mais diversos aspectos da vida de seu Olimpo superficcional: infraestruturas, alimentação, finanças, cultura, elevação moral e defesa espiritual de seu reino.
Ficha técnica
Direção: Guerreiro do Divino Amor
Produção: Guerreiro do Divino Amor
Produção Executiva: Guerreiro do Divino Amor
Direção de Fotografia: Thiago da Cruz, Lais Dantas, Guerreiro do Divino Amor
Direção de Arte: Guerreiro do Divino Amor
Som: Neural Xolotl, Guerreiro do Divino Amor
Montagem: Guerreiro do Divino Amor
Elenco: Jenna Hasse, Fleur André, Moïra Pitteloud, Ventura Profana, Gaëlle Deneuvy, Charlotte Maas, Leticia Ramos, Maria Theresa Michelle Wollny, Juliette Mancini, Sallisa Rosa, Maria Sabato, Lyz Parayzo, Castiel Vitorino Brasileiro
Animação: Guerreiro do Divino Amor
Roteiro: Guerreiro do Divino Amor
Narração: Christiane Kolla
Beleza: Francis Ases, Anouk-Eva, Joaquim Bezerra, Livia Moreira
Equipe Brasil: Lorran Dias, Amanda Seraphico, Natasha Bandeira
Fonte de Helvetia: Klau’s Kellamann
Exposições
Exposição retrospectiva “Superfictional Sanctuaries” no Centro de Arte Contemporânea de Genebra
Exposição “Neutrality Model”, Kunsthaus Aarau
BIOGRAFIA DE ARTISTA

Guerreiro do Divino Amor (1983), mestre em arquitetura, vive e trabalha no Rio de Janeiro. Seu trabalho investiga as Superficções, forças ocultas que interferem na construção do território e do imaginário coletivo, construindo um universo de ficção científica a partir de fragmentos de realidade. Sua pesquisa toma forma de filmes, publicações, objetos, e instalações de grande escala.
Foi vencedor do prêmio PIPA 2019 e da bolsa-prêmio do DAAD Artists-in-Berlin (Berliner Künstlerprogramm) em 2021-2022, finalista dos Swiss Art Awards 2008 e 2017. Em 2022 realizou a exposição individual retrospectiva “Superctional Sanctuaries” no Centre d’Art Contemporain em Genebra e representou a Suíça na bienal de Veneza em 2024. Guerreiro do Divino Amor participou de exposições na fundação Iberê Camargo, na Pinacoteca de São Paulo, no MAR, no CAC de Vilnius e do Arte Pará 2018 entre outras. Foi residente na FAAP Lutetia e no Pivô-Pesquisa em São Paulo, na CAL em Brasília, e participou do Bolsa Pampulha 2019. Seus filmes foram exibidos e premiados em várias mostras e festivais nacionais e internacionais.
FILMOGRAFIA
Clube da Criança (2008, 9 minutos)
De repente, Bárbara (2014, 12 minutos)
SuperRio Superficções (2015, 9 minutos)
Supercomplexo Metropolitano Expandido (2018, 7 minutos)
A Cristalização de Brasília (2019, 7 minutos)
O Mundo Mineral (2020, 9 minutos)
O Milagre de Helvetia (2022, 20 minutos)
Roma Talismano (2024, 9 minutos)
PUBLICAÇÕES E ENTREVISTAS
Prefácio apresentação do Milagre de Helvetia
por Pallavi Paul
É difícil escrever sobre o mundo todo de uma só vez. É mais difícil ainda escrever sobre o mundo todo quando ele está explodindo. Além disso, parece impossível escrever sobre um mundo que se desintegra e se restabelece simultânea e constantemente a cada segundo. No entanto, deve-se tentar, pois essa auda-ciosa ablação e recriação é a própria força vital da prática de Guerreiro do Divino Amor. O Atlas Mundial “Super Ficcional” que Divino Amor teceu ao longo dos anos não é somente um empenho para a implica-ção de várias localidades como o Brasil, Bruxelas e Suíça na história maior do colonialismo, extrativismo, corrupção política e desmantelo espiritual. É uma estratégia formal para desterritorializar, criticar e fundamentalmente questionar a forma do mundo como o conhecemos. Aqui as imagens pixelizam porém também se aglomeram, são ao mesmo tempo mutiladas e adornadas, provocam-se através de cor, som e movimento. É um mundo onde o excesso dentro das imagens é destravado e posto em salmoura, assim estendendo a vida dos conceitos, histórias e políticas; não para sua exaltação, mas para examinação críti-ca. Divino Amor faz isto através da invenção de uma cosmogonia mítica que deu voltas, dobrou e se des-dobrou em seis “capítulos”, sendo o último “O Milagre de Helvetia”, ambientado na Suíça, país com o qual Divino Amor tem uma íntima conexão por ser meio suíço.
Antes de mergulhar mais livremente na trama amotinada de capítulos que estruturam esta exposição e a prática de Divino Amor, convém se atentar a ideia do próprio milagre. Emergindo da palavra latina mirari, maravilhar-se, um milagre é em sua concepção um acontecimento que não oferece desfecho lógico. Parece requerer, como sua causa, algo além do alcance da ação humana e dos fenômenos naturais. Portanto, ao criar a impressão de uma libertação divina, ele necessariamente frustra as correntezas argumentativas e contestadoras da vida. Enquanto tem havido uma longa história de debates teológicos sobre o status do milagre dentro da religião, o que permaneceu praticamente intacto é a ideia do seu pertencimento ao reino do “sobrenatural”. Aqui o “sobrenatural” não é só uma extensão ou amplificação do “natural”, mas também pode ser lido como seu próprio oposto, onde o natural deve ser demolido para dar lugar a algo além de suas regras e expectativas. Isso poderia muito bem ser uma alegoria para os diferentes tipos de “superficções” que Divino Amor produz, onde sua pesquisa enciclopédica disfarçada dentro de animações de baixa resolução, sons estridentes e ações ostensivas interrompe as “ficções” naturalizadas das sociedades capitalistas. Os visuais atingem um frisson cataclísmico e kitschy como uma conclusão “natural” de um sistema antinatural e opressivo que reivindica uma captura divina sobre a vida.
Este milagre sobrenatural sustentado pela violência militar, racial, sexual e econômica é performado por um panteão de “deusas” no capítulo Helvético. O ministério divino instituído por Divino Amor compreende: Scopula, Friedena, Gudruna, Calvina, Aevuma, Desideria Patria, Desideria Remotta, Seminatora, Silentia, Kulma e Diewiesa Æterna, todas representando virtudes “superficcionais” de poder militar, beleza racialmente “pura”, força física, tempo moderno sagrado e cuidadosamente medido, espaço regimentado imaculado, uma raça superior atemporal, expansionismo imperialista e luxo no coração da natureza. À medida que cada uma dessas deusas aparece na tela e nas páginas da revista, Divino Amor coloca em relevo uma complexa teia de psicoses coletivas que simbolizam o poder da “Raça Superior do Olimpo”. Vampírica em sua relação com a Amazônia, a antagonista essencial da Suíça, encontramos exemplos concretos da história contemporânea que nos levam às vísceras tenebrosas da mãe Helvetia. Numa troca perversa, todas as “superfoods” como o açaí, cupuaçu e guaraná, que engrandecem a riqueza ecológica da região amazônica, são levadas para o Olimpo Helvético para nutrir seu povo, enquanto um barco da Nestlé navega pelas águas do amazonas distribuindo latas de leite condensado e produtos cheios de açúcares processados e outros químicos. O milagre de uma raça olímpica “super-abençoada” revela uma maquinação sombria, alimentada pelo poder do capital extrativista global.
Este universo milagroso pode então somente produzir catástrofe. Um jornalista, um hacker, um artesão de imagens autodidata, um feiticeiro do Photoshop, um arquiteto, um profeta travesso: Divino Amor é tudo isso ao mesmo tempo. A estética com a qual ele nos abençoa espelha a catástrofe dos milagres gêmeos do imperialismo e do capitalismo. As cores se descontrolam, espaços se dissolvem para flutuar e eterizar, o corpo se torna um playground de fantasias deslumbrantes: fezes se transformam em dados e a visão é transmutada em radiação. Cada momento da obra é uma explosão de histórias bem amarradas do século VII até o nosso imediato contemporâneo. Divino Amor, no entanto, lida com os pesados e tenebrosos resíduos dessa história com um humor catastrófico e afiado. Através de técnicas de justaposições absurdas, ele explora a cultura popular do mundo todo, usa vídeos de turismo como índices da auto-imagem de um país, implementa a hipérbole como um dispositivo narrativo; ele é capaz de nos levar ao longo de milênios com o ritmo rápido e seguro de um velocista experiente. Entrar no mundo de Divino Amor é como adentrar uma arquitetura de estilhaços vibrantes, refratando e dividindo as narrativas de poder numa revolta de cores. Através da selvageria digital da imagem, ele inventa um público que não pode simplesmente alegar conhecer e entender o trabalho; um público que precisa se render a esta floresta fractal cada vez maior; que precisa esperar, se perder e descobri-la de forma diferente a cada vez.
Tradução: Diego Paulino
Entrevista de Guerreiro do Divino Amor com Andrea Bellini, curador do pavilhão Suiço da bienal de Veneza
AB: Caro Guerreiro do Divino Amor, sua dupla nacionalidade suíço-brasileira e o fato de ter crescido na França permitiram que você habitasse literalmente um “outro lugar”, considerando a questão da identidade “nacional” como uma ficção, uma construção. Isso explica sem dúvida o seu
interesse em desmascarar os clichês sobre os quais se baseiam as grandes narrativas nacionais e ridicularizá-los. Mas como você desenvolveu seu trabalho como artista, que consiste essencialmente em uma verdadeira pesquisa de campo?
GDDA: Eu já havia começado meu trabalho de pesquisa durante os estudos de arquitetura. Quanto mais o tempo passa, mais percebo que a formação como arquiteto foi fundamental para o meu trabalho.
AB: Arquiteto de formação e artista autodidata! Você pode explicar de maneira simples aos nossos leitores e visitantes em que consiste o Superfictional World Atlas?
GDDA: É um projeto potencialmente infinito. Quando comecei, em Bruxelas, ainda não sabia queestava criando um atlas, mas na “Battle of Brussels” já havia a alegoria de duas civilizações antagônicas, o Superimpério e as Supergaláxias, que se chocam e que encontraremos de formas diferentes em todos os capítulos da saga. Há questões que atravessam todos – as auto-representações nacionais, as mitologias corporativas, as relações entre fé e capitalismo, entre modernismo e classicismo, etc. – e cada capítulo lança uma luz diferente sobre aspectos que, em última análise, dizem respeito ao mundo inteiro, mas que são mais evidentes em um lugar do que em outro.
AB: Em uma entrevista com Luiz Camillo Osorio, você disse que seu trabalho, de certa forma, aborda a complexidade do apocalipse. Você acredita que estamos realmente caminhando para o apocalipse? Qual é o seu pensamento político sobre isso?
GDDA: Acho que já estamos no apocalipse há muito tempo, e para muitas populações e civilizações, ele já passou. Estamos no pós-apocalipse.
AB: Concordo. De vez em quando ouvimos alguém falar sobre o fim do mundo, mas não devemos esquecer que para muitos povos e muitas civilizações, o mundo já acabou!
GDDA: Sim, exatamente. Quando fiz a entrevista com Luiz Camillo, era o momento da eleição de Jair Bolsonaro no Brasil. Era como a apoteose do apocalipse, a sua personificação grotesca, o fim do mundo explicado de forma muito didática, com todos os seus possíveis aspectos; o explícito aniquilamento das culturas, dos diferentes biomas, a destruição de nossas famílias LGBT, do estado social, até do vínculo de amor entre as pessoas. Foi a cristalização do apocalipse, como o apogeu do projeto colonial nu e cru, sem os floreios de uma suposta democracia racial para mitigá-lo. Vista de longe, a Suíça pode parecer o antiapocalipse, uma terra prometida que nada pode abalar. No entanto, a Suíça também tem um papel muito ativo nesse apocalipse, através das empresas e dos mercados financeiros que ali têm sede. Muitos dos crimes ambientais cometidos no Brasil, por exemplo, estão diretamente ligados a decisões tomadas na Suíça, e eu vi claramente os limites da benevolência suíça durante a cínica campanha do Conselho dos Estados contra a iniciativa das multinacionais responsáveis.
AB: Antes de falarmos sobre o Pavilhão, queria te fazer uma última pergunta sobre o seu trabalho. Me parece evidente que a sua estética não se inspira em nenhum artista ou movimento, mas sim na cultura popular, na televisão, nas novelas, na publicidade, nos videoclipes. Isso é verdade?
GDDA: Sim, de fato, tenho uma relação de atração e ao mesmo tempo de repúdio com esse mundo, porque são as imagens da cultura popular que me embalaram e às quais me sinto muito ligado emocionalmente. Cresci nos anos 80 e 90, durante a explosão dos videoclipes, dos efeitos especiais,
da música pop e dance. Crescer como garoto gay, numa época em que a internet não estava ao alcance das mãos, significava se sentir sozinho e isolado, não como hoje, que há muito mais comunidades e muito mais compreensão – não em todas as famílias, infelizmente – mas hoje é de
fato diferente. Naquela época, o mundo do pop era um lugar de sonhos e projeções. As divas pop eram um espelho fascinante no qual eu podia me identificar.
AB: Por isso acredito que o seu trabalho pode ser compreendido por um público amplo, até por aqueles que não têm formação ou conhecimento específico sobre arte. Na verdade, essa é a sua força: utiliza códigos estéticos que fazem parte da cultura popular.
GDDA: Sim, desde que comecei minha pesquisa, fui fascinado pela linguagem institucional, pelas autoficções do mundo corporativo, do setor agroalimentar e da Igreja. Também pelas superficções históricas: em Roma, o barroco era o pop da época. É uma maneira de ostentar, o pop toca o
coração das pessoas. Você disse que trabalho com clichês e paródias das coisas. É verdade que o trabalho começa pela superfície das coisas. Não é jornalismo investigativo. Eu exploro o que o país, as empresas e as organizações religiosas revelam em termos de cultura e identidade. Trata-se de ver como os estereótipos são construídos e agem. Com os colagens, procuro abalar esses elementos banais, torná-los frágeis, mexer com toda a construção insinuando algo estranho e ameaçador dentro de um contexto familiar.
AB: E também algo divertido…
GDDA: Sim, porque até rir é uma arma. Quando paramos de levar algo a sério, é o fim da autoridade. Porque se uma figura autoritária nos faz rir dizendo algo, acabou, não há mais respeito (risos). Na escola, no trabalho, na política, em todo lugar, e é essa a lógica do carnaval, que me inspira muito.
AB: Também acredito que a ironia seja uma grande forma de sabedoria, uma expressão de liberdade. Parafraseando o título da Bienal, poderíamos afirmar que no Pavilhão suíço convidamos o público a se tornar estrangeiro dentro de suas próprias verdades. Somente através da ironia podemos criar uma distância justa entre nós e o mundo. Esse também é o espírito do carnaval, como você disse. O carnaval como espaço de liberdade de pensamento e autonomia.
GDDA: Sim, o carnaval é central no meu trabalho, tanto na estética quanto na estrutura narrativa dos capítulos. Estudo muito os desfiles de carnaval, que retomam eventos históricos muito dramáticos e os transformam em magníficas alegorias que falam a milhões de pessoas sem abrir mão de sua complexidade.
AB: Alguns anos atrás, com a intenção de adicionar um capítulo sobre a Suíça ao seu Superfictional World Atlas, você chegou a Genebra. O resultado foi o Milagre de Helvetia, que apresentamos no Centre d’Art Contemporain Genève no âmbito de sua primeira grande retrospectiva. Aqui, no Pavilhão suíço, você apresenta o Milagre de Helvetia, mas o vídeo é projetado em uma cúpula. Você pode nos falar sobre essa instalação?
GDDA: Todas essas ficções de superioridade genealógica são construídas de forma abstrata através de narrativas históricas e mitos, mas também através da arquitetura, dos materiais e da simetria. O espaço de um banco, de uma igreja, de um tribunal, de um museu ou de um pavilhão da Bienal
geralmente tem uma estrutura semelhante, que é concebida inspirar respeito e submissão. É interessante ver a geopolítica traduzida em arquitetura nos Jardins da bienal de Veneza, através das representações nacionais. Assim, quando se sai do Pavilhão suíço, vê-se em um dia outras centenas de colunas (risos). São elementos arquitetônicos e imagens muito familiares e clássicos com os quais trabalhei no Pavilhão, mas que, se multiplicados exageradamente, tornam-se grotescos: uma overdose de mármore e colunas. O Milagre de Helvetia é apresentado em um planetário, um edifício que adoro e que lembra museus científicos, mas também estandes de venda e cúpulas de igrejas. Sob essa cúpula, o publico é imerso no Olimpo suíço para entrar em contato com as deusas que compõem o panteão helvético. É um mundo de ficção científica extraído de nosso ambie
cotidiano.
AB: No Milagre de Helvetia e em Roma Talismano, mas também em outras obras, você trabalha com pessoas que parecem fazer parte da sua família ampliada. Quem são e por que você trabalha com elas?
GDDA: Sim. Trabalhar com minha “família” ampliada, como você diz, é muito importante para mim. A Bienal me deu a oportunidade de convidar a colaborar as pessoas que amo, que aprecio a prática e que me influenciaram muito. Penso, em primeiro lugar, em Ventura Profana, parceira artística de longa data, com sua obra pastoral de missionária e sua maneira de ver o Evangelho sob uma nova luz, sem Senhor. Ela me ensinou muito do ponto de vista intelectual e espiritual, e também através de sua forma de trabalhar. A fé, nessa obra e em tudo o que faço, é muito importante. Ventura interpreta obviamente o papel de Calvina no Milagre de Helvetia. Ela vem de uma família protestante batista, portanto, de certa forma, também é uma herdeira do calvinismo. Depois, na primeira vez que estive em Roma, mandei uma mensagem dizendo a ela: “voltaremos aqui e você será a Loba Capitolina”. Não pensava que essa profecia se realizaria tão rapidamente.
Nesse projeto, pude colaborar pela primeira vez com meu marido, Diego Paulino, que é diretor de ficção científica, e foi uma experiência maravilhosa. Em Roma Talismano também estão esculturas-escudo de Lyz Parayzo, armas tão magníficas quanto perigosas. Muitos outros artistas amigos fazem parte dessa história, como Sallisa Rosa, que fez um belíssimo trabalho sobre a memória da Terra e interpreta o papel de Seminatora, a deusa das matérias-primas e do agroalimentar.
AB: Fale-me sobre a música que você escreveu em Roma.
GDDA: Eu escrevi a música para Roma Talismano com Beà Ayòóla, compositora e multi-instrumentista brasileira, que cresceu na Itália. Foi muito interessante trocar ideias com ela sobre música, pois ela tem uma experiência totalmente diferente da Itália em relação à minha. Eu estava fazendo uma residência em Roma para uma pesquisa, enquanto ela viveu lá os anos de uma adolescência completamente louca, e nos encontramos usando referências musicais e culturais semelhantes para compor, e rimos muito. Foi natural para mim voltar àquelas cantigas religiosas, que são uma forma de transe e meditação, com algumas partes mais pop, de funk brasileiro, e outras músicas que me embalaram. E como Roma é um local de peregrinação para o Olimpo cultural, a ópera, o talismã intocável da alta cultura, não poderia faltar nessa canção.
AB: Por que você escolheu a Itália para realizar o último capítulo de seu Superfictional World Atlas? E qual é a ligação entre Roma Talismano e Milagre de Helvetia? Por que você faz dialogar a Roma antiga com a Suíça moderna?
GDDA: A Suíça e Roma são dois lugares que, além de sua existência física, se tornaram conceitos: cada um, à sua maneira, constitui as fundações da alegada superioridade da cultura ocidental. A Suíça, como apoteose da civilização, seria a prova de que o capitalismo funciona, com uma população feliz, natureza protegida e desenvolvimento tecnológico de ponta. No Brasil, por exemplo, as cidades serranas que querem ser perfeitas disputam o título de “Suíça do Brasil”. Na Índia, há uma guerra similar em curso: qual cidade será coroada “Suíça da Índia”? E assim por diante. Foi em Roma que Jesus foi transformado em um deus branco e puro, justificando a ideia de uma superioridade divina da raça branca, e, portanto, o colonialismo, a escravidão e o que ainda hoje está na base da estrutura patriarcal e neocolonialista em que vivemos. Portanto, a eterna reciclagem de uma Roma antiga da fantasia, com seus bustos e suas colunas desbotadas, é uma
parte fundamental da construção do Ser branco. É o talismã desse poder imaginário baseado na estética neoclássica que se derramará sobre o Ocidente em uma avalanche de mármore e colunas.
Para voltar ao Brasil, quando foi fundada Brasília, uma das primeiras iniciativas foi erigir uma réplica da loba capitolina em frente ao palácio do governador. Ela personificava a ideia de que o Brasil se tornaria uma nação ocidental, uma civilização branca sob o domínio do racionalismo místico. Foi então que pela primeira vez pensei que um dia precisaria ir a Roma, às raízes dessa ficção, para entender suas renascenças, na época fascista e hoje.
OBRA DE REFERÊNCIA
Desfile da Unidos da Tijuca 2015
enredo sobra a Suíça
Justificativa
Alegoria da Suíça como o Olimpo superficcional do mundo, patrocínio geopolitico citado no filme “O Milagre do Helvetia”
