CADERNOS DE ARTISTA
O Sonho de Anu
2024, 16min, PB

O Sonho de Anu
Através da ciência do sonho e guiada pela memória da água, Anu, uma jovem originária do continente africano, refaz os passos dos seus ancestrais pelo território paraibano, lugar onde três reencontros pretendem plantar uma nova memória da presença indígena e negra no imaginário brasileiro.
Ficha técnica
Direção: Vanessa Kypá
Produção: Renna Costa, Vanessa Kypá e Bismark Karuá Tarariú
Produção Executiva: Renna Costa, Vanessa Kypá e Bismark Karuá Tarariú
Direção de Fotografia: Mika Costa
Direção de Arte: Mari Miguel
Som: Mari Miguel
Montagem/Edição: Priscila Nascimento e Edson Lemos Akatoy e Edson Lemos Akatoy
Elenco: Karutê Yakatara, Robinho Extrovertido Potiguara, Tai Tuwi’xawan (Taíza Nunes), Vanessa Kypá
Roteiro: Vanessa Kypá
Texto da narrativa: Thais Lira e Vanessa Kypá
Festivais, Mostras e Prêmios
19ª edição do Fest Aruanda (PB).
Decifrar os mistérios que envolvem os sonhos é uma sabedoria que se cultiva com o tempo, um saber que caminha lado a lado com a espiritualidade, força presente em cada ser que é independente de religião.
Anú é como um rio: nasce em algum lugar, deságua em outro e cria caminhos. É morada de peixes, de águas generosas e símbolo de fartura. Ao se encontrar com o encantamento de outros rios, revela-nos a sua ciência. De pele preta, cabelos crespos e vestes que carregam referências espirituais, Anú guarda um profundo conhecimento sobre o mundo dos sonhos e a rara capacidade de reprogramar memórias. Em seus sonhos, ela encontra os sinais deixados por seus antepassados e descobre como plantar memórias que tentaram apagar, firmando alianças com outros povos originários de África e Brasil, que compõem sua linhagem ancestral.
A água, com seu fluxo constante e inevitável, é o fio condutor desta narrativa. Manifestada nas memórias que emergem dos territórios, ela transita pelo mar da Aldeia Alto do Tambá, o Rio Jaguaribe na Avenida Dom Pedro II, em João Pessoa, e o açude no Vale do Piancó, Sertão paraibano. Conectar essas locações com o curso das águas foi a forma que encontrei de criar um fluxo natural, uma corrente de histórias e saberes.
A inspiração para o roteiro nasceu em um encontro inesperado. Em uma das minhas andanças por sebos culturais, desde 2017, busco livros migrantes, suas dedicatórias antigas, como quem procura uma chave para desbloquear memórias adormecidas. Em 2020, enquanto caminhava pelas ruas de Garanhuns com minha amiga Mika, encontrei um sebo e fui atraída à sessão de livros didáticos escolares. Folheando as páginas de obras dos anos 1990 e 2000, deparei-me com representações indígenas e negras retratadas de forma distante e pejorativa. A indignação plantou em mim a ideia de um filme onde as personagens pudessem interferir nas palavras-chave da história oficial, marcada pela generalização e pelo apagamento, propondo um olhar crítico à colonização e à narrativa imposta pelos livros didáticos.
No centro dessa travessia está Anu, que percorre territórios e reencontra pessoas que trazem consigo sinais dos seus antepassados. O sonho é sua bússola, sua força espiritual, a possibilidade de ressignificar memórias e acontecimentos do passado. A trajetória de Anu é guiada por quatro elementos principais:
O sonho, elemento guia e espiritual que conduz a narrativa e molda sua poética.
Quem é Anu, suas alianças e as pessoas que marcam seu caminho.
A memória oral, através dos áudios trocados com minha mãe, Daia, sobre práticas de pesca no semiárido, que orientam Anu pelos caminhos da água – do mar, do rio e do açude.
A presença do colonizador, simbolizada pelos livros didáticos, que evidenciam as contradições e violências do processo civilizatório europeu. Em contrapartida, diferente da escrita em papel, a oralidade assume o papel principal na transmissão de saberes de muitos povos indígenas, que historicamente são invalidados pela educação acadêmica e escolar. A oralidade, matriz pulsante deste trabalho, emerge como protagonismo e reconhecimento da transmissão de saberes. A voz de minha mãe, narrando práticas de pesca, torna-se não apenas um elo afetivo, mas um guia, um testemunho das águas e de suas histórias.
– O Sonho de Anu é, assim, uma celebração da ancestralidade e uma ressignificação da história. É um convite a percorrer os rios do passado, deixando-se guiar pelas memórias que a água guarda e pelas vozes que nunca se calaram.
BIOGRAFIA DE ARTISTA
Vanessa Kypá (1997) originária da Caatinga, (Paraíba, PB), é cineasta, arte educadora e produtora cultural. Graduada em Bacharelado em Artes Visuais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) é Diretora, roteirista e produtora dos curtas “Memória Cabocla” (2023), “O Sonho de Anu” (2024), “Doce de Gergelim” (2024) e No caminho do rio (2025), que falam sobretudo de ancestralidade, memória oral e identidade sertaneja.
Como arte educadora, realiza ações artísticas através da contação de histórias, pintura, cerâmica e escrita criativa desenvolvendo oficinas e intervenções em comunidades tradicionais, rurais, ONG’s e escolas.
É idealizadora e coordenadora do CineJuá, projeto cultural itinerante que realiza exibições de curtas-metragens protagonizados por pessoas negras e indígenas acompanhado de formações gratuitas em regiões afastadas dos centros urbanos com o objetivo de contribuir com a democratização ao cinema nacional.
FILMOGRAFIA
Memória Cabocla (2023, 13min)
O Sonho de Anu (2024, 16min)
Doce de Gergelim (2024, 6min)
No caminho do rio (2025, 25min)
PUBLICAÇÕES SOBRE A OBRA
boTrabalho de Conclusão de Curso (TCC) –
Anu é como um rio: a memória caminha pela água
por Maria Vanessa da Cosda Rodrigues (Vanessa Kypá)
Crítica
O Sonho de Anu (2024)
por Adriano Denovac
Ebook do prêmio Orlando Senna ao Curta Metragem Brasileiro
Página 18 – O Sonho de Anu (2024)

OBRAS DE REFERÊNCIA
Karaiw
música
de Kaê Guajajara
Justificativa
A letra de Karaiw, de Kae Guajajara, é uma poderosa denúncia que subverte os papéis de opressor e oprimido, reivindicando a voz e a agência de quem foi historicamente silenciado.
Ao afirmar “sou a própria autora da minha vida,” a artista resgata a autonomia narrativa, confrontando séculos de apagamento cultural e genocídio indígena. A música reflete sobre a dor de ter direitos roubados, terras invadidas e identidades apagadas, enquanto também se afirma como um manifesto de resistência e descolonização.
Com a força da poesia e da música como ferramentas de comunicação, Karaiw exige que se escute o grito de quem foi posto à margem e utiliza essa escuta para questionar estruturas coloniais ainda vigentes. A obra não apenas denuncia, mas provoca reflexão, ao imaginar um experimento que inverte os papéis, colocando o colonizador diante de sua própria violência. Assim, a música torna-se um manifesto contemporâneo que insiste na luta por justiça, memória e existência plena.
Não foi Cabral
música
de MC Carol
Justificativa
Não foi Cabral, música de MC Carol, é um manifesto que questiona a narrativa oficial ensinada nas escolas sobre a história do Brasil. A música confronta diretamente o mito fundador colonial, denunciando a violência e o genocídio que marcaram a chegada dos portugueses. Com versos como “Quem descobriu o Brasil, não foi Cabral,” MC Carol subverte a versão eurocêntrica da história, trazendo à tona o apagamento e a resistência dos povos originários e dos negros escravizados.
Além disso, a música dialoga com o contexto escolar, um espaço onde muitas vezes essas narrativas são perpetuadas sem questionamento. MC Carol reposiciona figuras como Zumbi dos Palmares e Dandara como protagonistas de uma história de luta e sobrevivência, desconstruindo a ideia de passividade atribuída aos oprimidos. Ao falar de forma direta, utilizando o funk como linguagem acessível e potente, Não foi Cabral torna-se um grito de resistência e reivindicação de memória, conectando o passado ao presente na luta por reconhecimento e justiça.
Reverência
música
de MC Carol
Justificativa
A música traz uma narrativa profundamente enraizada na valorização da ancestralidade africana e na desconstrução das narrativas coloniais impostas pela história eurocêntrica, reafirmando histórias e saberes que foram distorcidos ou apagados pelo colonialismo. Seus versos exaltam as contribuições africanas para a humanidade, da ciência à espiritualidade, enquanto denunciam as narrativas eurocêntricas que tentaram reduzir essa riqueza cultural.
Abolição da Escravatura
música
de Mestre João Pequeno
Justificativa
A ladainha Abolição da Escravatura, do Mestre de Capoeira Angola João Pequeno, traz uma reflexão profunda sobre a história oficial da libertação dos negros no Brasil, desconstruindo o mito da Princesa Isabel como heroína e destacando as lutas dos povos negros e quilombolas. A letra reafirma a resistência histórica e cultural, representada por figuras como Zumbi dos Palmares, e questiona as narrativas escolares que invisibilizam o protagonismo negro e perpetuam a falsa ideia de liberdade concedida de forma benevolente.
A música de João Pequeno, assim como a Capoeira Angola, é um convite à reflexão sobre as histórias não contadas e um chamado à continuidade da luta por liberdade e justiça. Ela ressoa como uma ponte entre passado e presente, alinhando se à necessidade de revisitar o a representação do Povo Negro na história brasileira e reafirmar sua centralidade na construção do país.
