CADERNOS DE ARTISTA
Roma Talismano
2024, 9min, Brasil/Itália


Roma Talismano
Sétimo capitulo do Atlas superfictional mundial, o filme musical Roma Talismano explora Roma como talismã moral e estético do ocidente. Uma avalanche de mármore e colunas, a Roma Antiga, o arquétipo de todos os impérios, fornece a base moral e a justificativa para o colonialismo, tornando-se uma ferramenta intelectual que ajuda a criar uma visão hierárquica do mundo, uma ideia superfictícia de “Civilização” em oposição à barbárie do restante do mundo. Sua arquitetura e estatuária, desprovidas de suas cores originais, incorporam os ideais de beleza superpálida, pureza eterna e refinamento superfictício universal.
A alegoria romana superficcional centra-se nos animais totêmicos ocidentais la lupa, l’aquila, l’agnella (a loba, a águia, a cordeira), que atravessam múltiplas épocas e mitologias em várias transfigurações. Essa superficção explora os berços do fascismo e da democracia ao navegar por diferentes camadas da imaginação que frequentemente se contradizem: pureza e depravação, apoteose e decadência.
Ficha técnica
Direção: Guerreiro do Divino Amor
Produção: Guerreiro do Divino Amor, Nicoletta Brandi, Amanda Seraphico
Produção executiva: Guerreiro do Divino Amor
Direção de fotografia: Guerreiro do Divino Amor, Diego Paulino
Direção de arte: Guerreiro do Divino Amor
Som: Beà Aayolà, Cristine Ariel
Montagem: Guerreiro do Divino Amor
Elenco: Ventura Profana, Adriana Carvalho, Amanda Seraphico
Personagens reais: Bambola Star, Titi Rivotril
Animação: Guerreiro do Divino Amor
Roteiro: Guerreiro do Divino Amor
Assistente de direção: Diego Paulino
Exposições
Bangkok Art Biennale
BIOGRAFIA DE ARTISTA

Guerreiro do Divino Amor (1983), mestre em arquitetura, vive e trabalha no Rio de Janeiro. Seu trabalho investiga as Superficções, forças ocultas que interferem na construção do território e do imaginário coletivo, construindo um universo de ficção científica a partir de fragmentos de realidade. Sua pesquisa toma forma de filmes, publicações, objetos, e instalações de grande escala.
Foi vencedor do prêmio PIPA 2019 e da bolsa-prêmio do DAAD Artists-in-Berlin (Berliner Künstlerprogramm) em 2021-2022, finalista dos Swiss Art Awards 2008 e 2017. Em 2022 realizou a exposição individual retrospectiva “Superctional Sanctuaries” no Centre d’Art Contemporain em Genebra e representou a Suíça na bienal de Veneza em 2024. Guerreiro do Divino Amor participou de exposições na fundação Iberê Camargo, na Pinacoteca de São Paulo, no MAR, no CAC de Vilnius e do Arte Pará 2018 entre outras. Foi residente na FAAP Lutetia e no Pivô-Pesquisa em São Paulo, na CAL em Brasília, e participou do Bolsa Pampulha 2019. Seus filmes foram exibidos e premiados em várias mostras e festivais nacionais e internacionais.
FILMOGRAFIA
Clube da Criança (2008, 9 minutos)
De repente, Bárbara (2014, 12 minutos)
SuperRio Superficções (2015, 9 minutos)
Supercomplexo Metropolitano Expandido (2018, 7 minutos)
A Cristalização de Brasília (2019, 7 minutos)
O Mundo Mineral (2020, 9 minutos)
O Milagre de Helvetia (2022, 20 minutos)
Roma Talismano (2024, 9 minutos)
SOBRE A OBRA
Crítica
Ativismo político-superficcional
Guerreiro do Divino Amor faz ruir a ideia de representação nacional na Bienal de Veneza
Por Bernarno José de Souza

ENTREVISTA
Entrevista de Guerreiro do Divino Amor com Andrea Bellini, curador do pavilhão Suiço da bienal de Veneza.
Entrevista de Guerreiro do Divino Amor com Andrea Bellini, curador do
pavilhão Suiço da bienal de Veneza.
AB: Caro Guerreiro do Divino Amor, sua dupla nacionalidade suíço-brasileira e o fato de ter crescido na França permitiram que você habitasse literalmente um “outro lugar”, considerando a questão da identidade “nacional” como uma ficção, uma construção. Isso explica sem dúvida o se interesse em desmascarar os clichês sobre os quais se baseiam as grandes narrativas nacionais e ridicularizá-los. Mas como você desenvolveu seu trabalho como artista, que consiste essencialmente em uma verdadeira pesquisa de campo?
GDDA: Eu já havia começado meu trabalho de pesquisa durante os estudos de arquitetura. Quanto mais o tempo passa, mais percebo que a formação como arquiteto foi fundamental para o meu trabalho.
AB: Arquiteto de formação e artista autodidata! Você pode explicar de maneira simples aos nossos leitores e visitantes em que consiste o Superfictional World Atla GDDA: É um projeto potencialmente infinito. Quando comecei, em Bruxelas, ainda não sabia qu estava criando um atlas, mas na “Battle of Brussels” já havia a alegoria de duas civilizações antagônicas, o Superimpério e as Supergaláxias, que se chocam e que encontraremos de formas diferentes em todos os capítulos da saga. Há questões que atravessam todos – as auto- representações nacionais, as mitologias corporativas, as relações entre fé e capitalismo, entre modernismo e classicismo, etc. – e cada capítulo lança uma luz diferente sobre aspectos que, em última análise, dizem respeito ao mundo inteiro, mas que são mais evidentes em um lugar do que em outro.
AB: Em uma entrevista com Luiz Camillo Osorio, você disse que seu trabalho, de certa forma, aborda a complexidade do apocalipse. Você acredita que estamos realmente caminhando para o apocalipse? Qual é o seu pensamento político sobre isso?
GDDA: Acho que já estamos no apocalipse há muito tempo, e para muitas populações e civilizações, ele já passou. Estamos no pós-apocalipse.
AB: Concordo. De vez em quando ouvimos alguém falar sobre o fim do mundo, mas não devemo esquecer que para muitos povos e muitas civilizações, o mundo já acabou!
GDDA: Sim, exatamente. Quando fiz a entrevista com Luiz Camillo, era o momento da eleição d Jair Bolsonaro no Brasil. Era como a apoteose do apocalipse, a sua personificação grotesca, o do mundo explicado de forma muito didática, com todos os seus possíveis aspectos; o explícito aniquilamento das culturas, dos diferentes biomas, a destruição de nossas famílias LGBT, do estado social, até do vínculo de amor entre as pessoas. Foi a cristalização do apocalipse, como o apogeu do projeto colonial nu e cru, sem os floreios de uma suposta democracia racial para mitigá-lo. Vista d longe, a Suíça pode parecer o antiapocalipse, uma terra prometida que nada pode abalar. No entanto, a Suíça também tem um papel muito ativo nesse apocalipse, através das empresas e dos mercados financeiros que ali têm sede. Muitos dos crimes ambientais cometidos no Brasil, por exemplo, estão diretamente ligados a decisões tomadas na Suíça, e eu vi claramente os limites da benevolência suíça durante a cínica campanha do Conselho dos Estados contra a iniciativa das multinacionais responsáveis.
AB: Antes de falarmos sobre o Pavilhão, queria te fazer uma última pergunta sobre o seu trabalho. Me parece evidente que a sua estética não se inspira em nenhum artista ou movimento, mas sim na cultura popular, na televisão, nas novelas, na publicidade, nos videoclipes. Isso é verdade?
GDDA: Sim, de fato, tenho uma relação de atração e ao mesmo tempo de repúdio com esse mundo, porque são as imagens da cultura popular que me embalaram e às quais me sinto muito ligado emocionalmente. Cresci nos anos 80 e 90, durante a explosão dos videoclipes, dos efeitos especiais, da música pop e dance. Crescer como garoto gay, numa época em que a internet não estava ao alcance das mãos, significava se sentir sozinho e isolado, não como hoje, que há muito mai comunidades e muito mais compreensão – não em todas as famílias, infelizmente – mas hoje é de fato diferente. Naquela época, o mundo do pop era um lugar de sonhos e projeções. As divas pop eram um espelho fascinante no qual eu podia me identifica
AB: Por isso acredito que o seu trabalho pode ser compreendido por um público amplo, até por aqueles que não têm formação ou conhecimento específico sobre arte. Na verdade, essa é a su força: utiliza códigos estéticos que fazem parte da cultura popular.
GDDA: Sim, desde que comecei minha pesquisa, fui fascinado pela linguagem institucional, pelas autoficções do mundo corporativo, do setor agroalimentar e da Igreja. Também pelas superficç históricas: em Roma, o barroco era o pop da época. É uma maneira de ostentar, o pop toca o coração das pessoas. Você disse que trabalho com clichês e paródias das coisas. É verdade que o trabalho começa pela superfície das coisas. Não é jornalismo investigativo. Eu exploro o que o país, as empresas e as organizações religiosas revelam em termos de cultura e identidade. Trata-se de ver como os estereótipos são construídos e agem. Com os colagens, procuro abalar esses elementos banais, torná-los frágeis, mexer com toda a construção insinuando algo estranho e ameaçador dentro de um contexto familiar.
AB: E também algo divertido…
GDDA: Sim, porque até rir é uma arma. Quando paramos de levar algo a sério, é o fim d autoridade. Porque se uma figura autoritária nos faz rir dizendo algo, acabou, não há mais respeit (risos). Na escola, no trabalho, na política, em todo lugar, e é essa a lógica do carnaval, que me inspira muito.
AB: Também acredito que a ironia seja uma grande forma de sabedoria, uma expressão de liberdade. Parafraseando o título da Bienal, poderíamos afirmar que no Pavilhão suíço convidamo o público a se tornar estrangeiro dentro de suas próprias verdades. Somente através da ironia podemos criar uma distância justa entre nós e o mundo. Esse também é o espírito do carnaval, como você disse. O carnaval como espaço de liberdade de pensamento e autonomia.
GDDA: Sim, o carnaval é central no meu trabalho, tanto na estética quanto na estrutura narrativa dos capítulos. Estudo muito os desfiles de carnaval, que retomam eventos históricos muit dramáticos e os transformam em magníficas alegorias que falam a milhões de pessoas sem abri mão de sua complexidade.
AB: Alguns anos atrás, com a intenção de adicionar um capítulo sobre a Suíça ao seu Superfictiona World Atlas, você chegou a Genebra. O resultado foi o Milagre de Helvetia, que apresentamos no Centre d’Art Contemporain Genève no âmbito de sua primeira grande retrospectiva. Aqui, no Pavilhão suíço, você apresenta o Milagre de Helvetia, mas o vídeo é projetado em uma cúpula. Você pode nos falar sobre essa instalação?
GDDA: Todas essas ficções de superioridade genealógica são construídas de forma abstrata atravé de narrativas históricas e mitos, mas também através da arquitetura, dos materiais e da simetria. O espaço de um banco, de uma igreja, de um tribunal, de um museu ou de um pavilhão da Bienal geralmente tem uma estrutura semelhante, que é concebida inspirar respeito e submissão. É interessante ver a geopolítica traduzida em arquitetura nos Jardins da bienal de Veneza, através das representações nacionais. Assim, quando se sai do Pavilhão suíço, vê-se em um dia outras centenas de colunas (risos). São elementos arquitetônicos e imagens muito familiares e clássicos com os quais trabalhei no Pavilhão, mas que, se multiplicados exageradamente, tornam-se grotescos: uma overdose de mármore e colunas. O Milagre de Helvetia é apresentado em um planetário, um edifício que adoro e que lembra museus científicos, mas também estandes de venda e cúpulas d igrejas. Sob essa cúpula, o publico é imerso no Olimpo suíço para entrar em contato com as deusas que compõem o panteão helvético. É um mundo de ficção científica extraído de nosso ambie cotidiano.
AB: No Milagre de Helvetia e em Roma Talismano, mas também em outras obras, você trabalha com pessoas que parecem fazer parte da sua família ampliada. Quem são e por que você trabalha com elas?
GDDA: Sim. Trabalhar com minha “família” ampliada, como você diz, é muito importante para mim. A Bienal me deu a oportunidade de convidar a colaborar as pessoas que amo, que aprecio a prática e que me influenciaram muito. Penso, em primeiro lugar, em Ventura Profana, parceir artística de longa data, com sua obra pastoral de missionária e sua maneira de ver o Evangelho sob uma nova luz, sem Senhor. Ela me ensinou muito do ponto de vista intelectual e espiritual, e também através de sua forma de trabalhar. A fé, nessa obra e em tudo o que faço, é muito importante. Ventura interpreta obviamente o papel de Calvina no Milagre de Helvetia. Ela vem de uma família protestante batista, portanto, de certa forma, também é uma herdeira do calvinismo. Depois, na primeira vez que estive em Roma, mandei uma mensagem dizendo a ela: “voltaremos aqui e você será a Loba Capitolina”. Não pensava que essa profecia se realizaria tão rapidamente. Nesse projeto, pude colaborar pela primeira vez com meu marido, Diego Paulino, que é diretor de ficção científica, e foi uma experiência maravilhosa. Em Roma Talismano também estão esculturas-escudo de Lyz Parayzo, armas tão magníficas quanto perigosas. Muitos outros artistas amigos fazem parte dessa história, como Sallisa Rosa, que fez um belíssimo trabalho sobre a memória da Terra e interpreta o papel de Seminatora, a deusa das matérias-primas e do agroalimentar.
AB: Fale-me sobre a música que você escreveu em Roma.
GDDA: Eu escrevi a música para Roma Talismano com Beà Ayòóla, compositora e multi-instrumentista brasileira, que cresceu na Itália. Foi muito interessante trocar ideias com ela sobre música, pois ela tem uma experiência totalmente diferente da Itália em relação à minha. Eu estava fazendo uma residência em Roma para uma pesquisa, enquanto ela viveu lá os anos de uma adolescência completamente louca, e nos encontramos usando referências musicais e culturais semelhantes para compor, e rimos muito. Foi natural para mim voltar àquelas cantigas religiosas, que são uma forma de transe e meditação, com algumas partes mais pop, de funk brasileiro, e outras músicas que me embalaram. E como Roma é um local de peregrinação para o Olimpo cultural, a ópera, o talismã intocável da alta cultura, não poderia faltar nessa canção.
AB: Por que você escolheu a Itália para realizar o último capítulo de seu Superfictional Worl Atlas? E qual é a ligação entre Roma Talismano e Milagre de Helvetia? Por que você faz dialogar a Roma antiga com a Suíça moderna?
GDDA: A Suíça e Roma são dois lugares que, além de sua existência física, se tornaram conceitos: cada um, à sua maneira, constitui as fundações da alegada superioridade da cultura ocidental. A Suíça, como apoteose da civilização, seria a prova de que o capitalismo funciona, com uma população feliz, natureza protegida e desenvolvimento tecnológico de ponta. No Brasil, por exemplo, as cidades serranas que querem ser perfeitas disputam o título de “Suíça do Brasil”. Na Índia, há uma guerra similar em curso: qual cidade será coroada “Suíça da Índia”? E assim por diante. Foi em Roma que Jesus foi transformado em um deus branco e puro, justificando a ideia d uma superioridade divina da raça branca, e, portanto, o colonialismo, a escravidão e o que ainda hoje está na base da estrutura patriarcal e neocolonialista em que vivemos. Portanto, a eterna reciclagem de uma Roma antiga da fantasia, com seus bustos e suas colunas desbotadas, é uma parte fundamental da construção do Ser branco. É o talismã desse poder imaginário baseado na estética neoclássica que se derramará sobre o Ocidente em uma avalanche de mármore e colunas. Para voltar ao Brasil, quando foi fundada Brasília, uma das primeiras iniciativas foi erigir uma réplica da loba capitolina em frente ao palácio do governador. Ela personificava a ideia de que Brasil se tornaria uma nação ocidental, uma civilização branca sob o domínio do racionalismo místico. Foi então que pela primeira vez pensei que um dia precisaria ir a Roma, às raízes dessa ficção, para entender suas renascenças, na época fascista e hoje.
OBRAS DE REFERÊNCIA
Aniversario de Bambola Star
(performances e registro video)
2011
Justificativa
Video citado no inicio da canção de “Roma Talismano”, incarna a Italia como eldorado superficcional travesti, uma grande inspiração na pesquisa do filme.
Altar da Patria, Roma
(obra arquitetônica)
Justificativa
O altar da patria, popularmente conhecido como “maquina de escrever”, a apoteose neoclássica numa avalanche de colunas super pálidas.
